sexta-feira, janeiro 06, 2006

Aos líricos

Toda a gente sabe que os líricos, esses seres mitológicos bem conhecidos e estudados pelo cãnone institucional, sentem e sofrem mais e melhor do que os comuns dos mortais. bebem absinto até ao delírio, isolam-se frequentemente em charnecas humidas e amam perdidamente coisas igualmente frágeis e mal-definidas. os líricos vêem a vida por um ecrã, por uma montra, por um quadro, por sonhos emprestados. os líricos citam os pesadelos alheios, cobiçam os espectros da melancolia e parasitam todas as coisas remotamente puras, sem nunca saber reconhecer a pureza.
Não pareça esta conversa de desprezo, mas o lirismo que eu conheço é o vidro entre as pessoas e a vida, o sonho entre a mente cansada e o sono, o ecrã entre o criador e o mundo já criado. O lirismo que eu desprezo é aquele que, privatizado em galerias e indústrias, nos faz encolher os ombros na vaidade ou na insegurança de sermos mais ou melhor, ou menos e piores, do que os outros. O mundo está aí a girar também para aqueles que não têm o vocabulário para ser líricos, nem os livros nas prateleiras, nem se batem contra gigantes. o mundo sensível é dos moinhos e das camponesas-nunca-princesas, de todos os que nunca encontram as palavras certas, nem sabem onde procura-las. gostava de devolver o lirismo ao lugar de ele nunca deveria ter saído: das ruas, do vento e dos sentidos enganadores, dos instintos mais pragmáticos de toda a gente que respira o mesmo ar poluido deste mundo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Estou impressionado...
Depois de um texto destes até me dá vontade de conhecer a pessoa que escreveu tão sábias palavras.

Hoje à noite no café da esquina?

Anónimo disse...

os verdadeiros líricos são aqueles a quem as palavras não chegam para descrever o real... e a maior parte das vezes são anónimos melancólicos.

Anónimo disse...

Hmm ... mas que texto tão .... lírico ...